Filmada na Vill’Alcina, A CASA DO LADO põe em cena algumas narrativas que se associam a uma obra que tem marcado sucessivas gerações de arquitectos.
Projecto: Vill'Alcina, Caminha
Arquitecto: Sergio Fernandez
Produção: Ruptura Silenciosa
Realização e Argumento: Luis Urbano
Assistente de Realização: Ana Resende
Fotografia: Rui Manuel Vieira, Miguel C. Tavares
Montagem: Miguel C. Tavares
Pós-produção Vídeo: Joana Deusdado
Pós-produção Áudio: Armando Ramos
Sonoplastia: Ana Resende, Miguel C. Tavares
Banda Sonora: Guilherme Lapa
Interpretação: Joana Batista, Júlio Resende, Nuno Bernardo, Pedro Loureiro, André Urbano, David Teixeira, Daniel Schröder, Tiago Costa, Rodrigo Dessa, Olga Amarante, Pedro Maia, Margarida Leão, Francisco Rocha, Teresa Dias
2012 | 16'' | cor | 16:9
Maio de 68 (o do lado): o alvorecer
Moral da história (começando pelo fim): a ruptura silenciosa revisita aqui a luta de classes (não se sabe se à época da Vill'Alcina, se mais recentemente, mas a história repete-se como as marés). Inquilinos, clandestinos, senhorio e factótum - tudo de manhã cedo. Amor livre a sono solto, é o credo daquele bando à parte: e sono livre - livre de senhorios.
O método arquitectónico-cinematográfico de Luís Urbano obtém neste filme um esclarecimento particularmente evidente. Já vimos, em Sizígia, como ele cumpre o
prometido e cruza procedimentos de cinema actualizados com a semântica e a sintaxe da arquitectura que revisita. Mas faltou-nos, na análise anterior, relevar a estratégia específica e distintiva de que ele se serve para manifestar a arquitectura sem a filmar: sem a reduzir a fundo de cenário de uma ficção, nem a focar como estrela principal de um documentário aplicadamente didáctico (e nisso retomando também o abandono, pelas Novas Vagas, quer da distinção categorial entre documentário e ficção, quer do primado da estrutura narrativa como paradigma de significação do mundo).
O cineasta da Ruptura vai, sim, instalando um fio muito, muito ténue de acções e linhas de acção de personagens indeterminados, que a câmara acompanha nas suas deambulações necessárias pelo espaço e de acordo com o espaço, acenando-nos com um MacGuffin absolutamente elusivo que nos põe no encalço vão de uma história que procuramos debalde reconstituir como aqueles fios labirínticos do jogo do cordel mas que permanecerão soltos e irrecuperáveis no final (e levando à 'sizígia', ao extremo, o célebre estratagema hitchcockiano, igualmente próprio dessa época, que lhe permitia sabotar por dentro todas as promessas da modernidade sem ninguém dar por isso).
O modo como esses personagens se movem; o modo como o filme se faz filme, se constrói (na sua atenção à montagem e na sua atenção ao plano, ultrapassando as dicotomias bazinianas e as oposições entre Tarkovsky e Eisenstein), e o modo como a casa se revela (aos ditos movimentos não-narrativos dos personagens e aos tais processos indirectos do filme, evitando narrativizar o espaço arquitectónico e recusando submetê-lo enquanto obra temporal ao acabamento imagético e imaginário de um filme 'concludente'), são homólogos, partilham uma homologia profunda.
O que se passava com o funcionário da piscina? Ele deambulava entre os três tempos do tempo enquanto trabalhava, coleccionava verões enquanto calibrava as águas, e dessa maneira a piscina pode aparecer como arquitectura do mar e da terra, do passado e do presente, dos muros e das pessoas, da técnica e do prazer, estática e dinâmica, temporal e espacial, material e imaterial, inerte e viva.
Para isso não basta, como dissemos, o personagem não-narrativo (deambulante, visionário, reminiscente, paralisado): é preciso que também a câmara aceite ser antonioniana e se perca à semelhança dos personagens; e que também a montagem proceda por loopings de toda a espécie, para que no filme aconteça como na vida, que se enreda nela própria e se cruza consigo mesma até ao inextricável. E perceber que o espaço-tempo de um edifício não serve só para sediar filmes de duelos ou terror, e que, na disparidade desencontrada da humana existência, em si mesmo ele consiste numa espécie de fita de Mõbius. Não é possível vê-lo, objectivá-lo, apropriá-lo. Ele escapa à sua própria unidade e totalidade quanto, nele, os fugitivos ou os inesperados escapam ou chegam pelo outro lado.
Impossível perceber como funciona 'a casa do lado', embora se aperceba que ela parece de facto a vizinha de si própria (mas nem se afigura ser essa geminação que viabiliza a debandada do bando à parte). Diríamos que o procedimento de Luís Urbano poderá ser qualquer coisa como isto: chegado, o cineasta, a determinado edifício, qual é a sua propriedade dominante? Identificada esta, o que chama ela a si, o que sugere ela? Daí, instala-se esse levíssimo fumo sem fogo de uma quase ficção, que permitirá em seguida ao filme explorar essa propriedade também ao de leve, e deixar entrever a vida funcional da casa a partir dela.
No caso da piscina, foi o marulho enquanto obscuridade. No caso da Vill’Alcina, é menos a sua irmã siamesa do que o seu estiramento ao comprido. Primeiro, prolongado nos corpos deitados; em seguida, deitando-os em atravessado sobre a linha longitudinal enfática que a câmara começará por sublinhar, levando a limite o imperativo do título e lateralizando sem fim a camas ocupadas. A casa encontra-se pronta e destinada a fintar os esforços do senhorio (e do arquitecto-cineasta) em apanhá-la em flagrante delito: é uma casa que, com a cumplicidade do seu arquitecto (Sergio Fernandez), não só convida a estender-se promiscuamente ao longo dela, como se furta a qualquer controlo dessa transgressão. Embora permita que se apaguem os seus traços comprometedores.
Seguindo agora o desenrolar do filme. Num primeiro campo de batalha, observamos, cheios de amor pelos objectos sujos, a cozinha desarrumada. A câmara atravessa, impenitente, a inteira geometria da lateralidade até reparar que no campo de batalha ao lado do primeiro, parece faltar um no final (não falta). Jump cut para o monte acima do nevoeiro (geografia: é o Norte), jump cut para as fornadas de pão (é manhã cedo). Nesta rua de muros de pedra, era há muitos anos: saco de pão e garrafas de leite, a dizerem a missa à porta de casa, e a santificarem-na. O tema da manhã limpa, da alvura, da aldeia, como modalidades do tempo e modalizadores arquitectónicos 'auxiliares' da Villa. Esse particular sentimento do acordar ainda frio e ainda penumbroso, essa sensação de hora do dia, esse sentido de lugar e de localização, são dados com admirável propriedade pelo realizador, capaz de filmar o torpor morno das camas, a obscuridade da entre-luz, a manhã estremunhada, o macio e alvo, muito caseiro e cheiroso e textural, do pão e do leite (que eram inocência que bastasse frente às investidas do senhorio, cuja casa é cúmplice dos soixante-huitards e não da lei e da ordem, porque ela é uma casa ao comprido, e o que é que há-de fazer uma casa ao comprido, o que é que há-de se esperar dela...
Uma casa que labirinta os esforços do perseguidor, do Pai? Um perseguidor que bate à porta filmado ‘do chão para o queixo', na vertical? Eis o que recordaria Shining (1980), excepto no recurso anti-kubrikiano à focagem superficial mais conspícua, que esbate até à mancha tudo quanto se não encontre em foco (mas alternando com alguma, moderada profundidade de campo, o que cria um ritmo que será depois o mesmo que o do jogo das escondidas entre os vários porquinhos e o lobo mau).
O puro prazer de se estender ao comprido numa casa ao comprido, e de se escapulir, não pelas traseiras, mas pelo próprio comprimento, como numa casa fendida de Gordon Matta-Clark?
José Manuel Martins
Departamento de Filosofia da Universidade de Évora