Em “Como se desenha uma casa”, título emprestado de um poema de Manuel António Pina, a arquitectura amena de um dos mais amados projectos modernistas de habitação colectiva em Portugal é usada para contar uma história em que o passado é também presente. “Como se desenha uma casa” foi filmada no Bloco das Águas Livres, um edifício desenhado por Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral nos anos 50 do séc. XX.
Argumento e realização: Luis Urbano
Interpretação: Anabela Almeida, Jorge Andrade, Miguel Damião, Mónica Garnel, António Oliveira, Tânia Alves, José Capela, Hugo Franco, Paula Diogo, Carlos Ribeiro
Produção: JackBackPack | A+A Books | Mala Voadora
Cinematografia: Bruno Nacarato
Montagem: Luis Urbano com Bruno Nacarato
Captação de Som: João Bastos
Assistentes de Produção: Isabel Rodrigues e Anna Gonçalves
Anotação: Anna Gonçalves
Pós-Produção Vídeo: Joana Deusdado
Pós-Produção Áudio: Armando Ramos
Banda Sonora: Gisela João
2014 | 19’29” | cor | 16:9
O Jogo do Cordel enquanto paradigma arquitectónico
De outra estirpe, infinitamente mais complexa, é o espaço-tempo arquitectónico do último filme de Luis Urbano, o mais virtuosístico dos três (voltando ao antonionismo, desta vez porventura o de La Notte (1961)). O estratagema de conjugar a elusividade dos acontecimentos com a dos espaços (arquitectónicos, e fílmicos) e a dos tempos (fílmicos, e arquitectónicos) é aqui elevado a uma arte consumada.
Aludíamos a Matta-Clark: o tema do cut - do corte e da montagem - domina gráfica, conceptual e ontologicamente esta pequena gema cinematográfica, onde tudo se configura dual: corte do pão e do topo da garrafa, a teia dos fios do direito e do avesso e outra vez do avesso, o onscreen e o offscreen, a segunda chegada a casa da talvez Mónica (talvez a da viagem de há dois anos), o elevador alternando com a escada, a escada fracturada em cotovelo, o corredor que vai de um lado ao outro do edifício, Mónica que parece ela e outra, a lavandaria que era num sítio e agora é noutro, o sair e o entrar pela frente e pelas traseiras, os tempos (não-sequenciais, mas divididos) em que tudo isso acontece, o antes e o depois, o ser e não ser talvez uma mesma mulher (não só a(s) que se vê(em), como entre essa(s) e a que é mencionada como 'Mónica'), tudo isto configura um tubo topológico com propriedades de doughnut ou de anel de Mobius que afecta não apenas o serpenteamento labiríntico do edifício e do itinerário da sua laboriosa travessia (também reminiscente desse hotel Overlook tão impossível de reconstituir como o próprio labirinto, em Shining, por sua vez reminiscente de um duo hotel-labirinto igualmente espácio-temporal anterior, O ano passado em Marienbad, de Resnais (1961)), como a conduta dos próprios personagens e o comportamento enigmático com que o filme concorre para tirar os fios das mãos de uns para os passar modificadamente para as mãos de outros, arquitectando espaços, acontecimentos, seres, eventos, tempos, de maneira a pôr em evidência... o modo como tudo isso vai reatar, reapanhar, no final, o fio de ariadne deste labirinto a três, e encaixar, do outro lado (onde a câmara se vai colocar à espera da chegada de Mónica, anunciada e inesperada), num uso sucessivamente elíptico dos contracampos, um puzzle que se torna definitivamente indecifrável no momento do seu preciso acabamento (como qualquer edifício que se preze, diríamos).
A chave de tudo isto? Talvez... a própria chave? (Outro MacGuffin). Mas nas deambulações antonionianas (e béla-tarsianas, e van-santianas), pouco importa o quê: por mais agudo que seja um reconhecimento ou o seu contrário (como no desfecho de The Passenger), trata-se sempre de um reconhecimento do irreconhecível. Porque desde o início uma potência do hiato se interpunha entre esses famosos pares duais: um 'talvez' persistente e fatídico que descontinuava qualquer nexo (excepto o da inexorável, controladíssima montagem cinematográfica disso tudo, a dizer que, no fim dos fins, a Arquitectura ganhou).
(to be continued...)
José Manuel Martins
Departamento de Filosofia da Universidade de Évora