SIZÍGIA
SIZÍGIA é a primeira de uma série de curtas metragens realizadas no âmbito do projecto de investigação da FAUP, “Ruptura Silenciosa. Intersecções entre a Arquitectura e o Cinema. Portugal 1960-74”. Filmada na Piscina das Marés (Álvaro Siza ,1959-65), SIZÍGIA procura usar as imagens em movimento, não apenas como um método de representação da arquitectura, mas como um processo de investigação do espaço que explora as suas qualidades narrativas e o sentido de lugar criado pelo uso, os materiais, a luz e o som.
Projecto: Piscinas das Marés, Leça da Palmeira
Arquitecto: Álvaro Siza
Interpretação: Rui Pinto
Produção: Ruptura Silenciosa
Realização: Luis Urbano
Assistente de Realização: Ana Resende
Argumento: Ana Resende, Luis Urbano, Miguel Tavares, Pedro Neto
Fotografia: Miguel C. Tavares, Pedro Neto
Montagem: Miguel C. Tavares
Pós-produção Video: Joana Deusdado
Sonoplastia: Ana Resende, Miguel C. Tavares
Banda Sonora: Guilherme Lapa
2012 | 17' | cor | 16:9
SIZÍGIA, ou O Sexto Castelo
Filme multipremiado e com larga circulação em festivais nacionais e internacionais, ‘Sizígia’, cujo título é em si mesmo um programa poético (puro significante evocativo, de significado ausente), abre em clave de ‘marulho obscuro’: sobre o ecrã negro, a imagem sonora precede a imagem visual, como quem escuta um búzio.
Ou melhor: por artes da antiquíssima sinestesia do marulho, na própria espuma sonora do mar ele é avistado, vindo praiar visualmente nesse vocativo: ‘é o mar!...’
Por singular paradoxo, o mar, ancestral, encontra-se sempre no futuro: aguardando desde sempre, ele é, todavia, o que ‘vem a seguir’, quer a terra donde ‘já se ouve’, quer em relação a si próprio como ‘proibida azul distância’ e ‘mar indefinido’. Como no poema pessoano do ‘plantador de naus a haver’, desde o seu instante inicial este é um filme temporalmente em antecipação; mas, tal como o oceano, essa antecipação vem desde a mais antiga memória. Esta relação do passado para o futuro (cíclica como as marés e como a natureza, mas misteriosa e irreversível como o Tempo) será o eixo de organização do filme - e pretende indiciar o eixo de organização da arquitectura: eixo de Cronos que é como... uma piscina na rocha: o tekton arcaico e profundo das placas sólidas (a ‘arché’, o passado) na sua relação visionária com o elemento líquido, com a água bachelardiana dos sonhos (o ’projecto', que em arquitectura não é apenas a fase que conduz à obra, mas o incessante sonho do seu destino, retomado do desenho criador de Álvaro Siza ao olhar do funcionário que zela do lugar como de um ser vivo, alongando a vista ao infinito sobre o mar e escutando, na cornucópia do seu singular búzio de água doce - o leitor de cassetes -, a espiral do som alegre da vida estival e balnear que retorna e avança).
E é então que o ecrã se ilumina como um dia que se abre (e não como um plano que corta). O aberto do mundo é, pois, temporal: é um advento, e nisso comungam, neste filme, as temporalidades da imagem e do som, ou melhor, da imagem visual e da imagem sonora (a de um som que é visto).
No momento em que então se conjugam o visual e o aural, temos no ecrã o equilíbrio entre o movimento balanceante do mar (elemento sonoro) e o carácter estático, pétreo, da imagem de terra, duplicado pela absoluta imobilidade da câmara (elemento visual). Quer dizer, temos os três tempos: o presente óptico e o arco mágico de passado a futuro formado pelas ondas. Não menos apropriadamente, o presente consta onscreen, e os dois tempos circundantes que lhe oferecem volume, tempos aurais e não presentes, estão offscreen. Mas são, ambos – quer o som em campo, quer o som fora de campo -, elementos intra-diegéticos, quer dizer, pertencentes ao mundo apresentado (e não acrescentados de fora, como por exemplo a ‘música de filme', cujos instrumentos não pertencem ao mundo filmado).
Ainda dentro do minuto inicial de filme, as gaivotas atravessam o espaço, e o funcionário também. Percebemos que procede à lavagem de uma zona construída, ao mesmo tempo encastrada na rocha quase até à camuflagem, e ostensivamente ortogonal, abstracta, geometrizada. A localização rebaixada e distante donde é obtida a filmagem, correspondente a um ponto da praia à altura humana (que resulta quase, enquanto imagem, numa ‘altura Ozu' - ‘ajoelhada’ - devido simplesmente ao desnível natural), oferece uma primeira perspectiva do sítio. Num filme que, como é intenção expressa do projecto de investigação e do realizador, pretende revisitar reflexivamente uma época arquitectónica-cinematográfica e que, consequentemente, numa elaboração de segundo grau se constrói também mediante a citação subtil e a reapropriação contemporânea de soluções cinemáticas coevas, encontramos aqui citado o primeiro momento de um dispositivo narrativo (os reenquadramentos reveladores, que mostram sucessivamente ‘a mesma cena' de um novo ponto de vista, alterando com isso radicalmente o seu significado e corrigindo as anteriores supostas evidências), dispositivo perfeitamente adequado a circunscrever o modo como uma obra arquitectónica se implanta no local e se revela por sucessivos perfis e ‘contracampos' no seu contexto espacial, através dos actos e das operações da própria vida que a habita. Encontramo-lo tanto em Rashomon (1950), de Kurosawa, como em Incident at a Corner (1960), de Hitchcock: as sucessivas perspectivas não se acumulam - redefinem e reperspectivam as anteriores, baralhando o espectador até ao desenlace final... ou falta de um. Assim, mais adiante, um complexo de piscinas que começa por nos aparecer como se o seu único e magnífico horizonte fosse o da solidão oceânica, revelar-se-á num dialogo geométrico inesperado com os grandes prédios avarandados que lhe fornecem o contraforte do lado de terra. Pelo meio foram ficando outros tantos avistamentos sectoriais que revelam e iludem sempre a teia de relações inesgotável entre o construído e o local.
No passo seguinte da película, a imagem em movimento, solicitada pelos seres que se movem, faz jus ao seu nome e desloca a câmara para as proximidades da mais interessante delas, o humano. Ao acercar-se, muda também de localização, e passamos a ouvir, desde o lugar da câmara, o mesmo que o personagem do funcionário, nas imediações desta, também ouve, ou ouviria, se não parecesse ter, em vez disso, postos um par de headphones que formam tampão em volta das orelhas (e logo o confirmamos: mas o tempo de hesitação é crucial, e é desse regime de deceptividade que é construído este filme): o alegre bulício misturado de uma distendida e aprazível cena estival de vozes, exclamações, chamamentos e ruídos líquidos, puro prazer solar e pura joie de vivre, trazidos desde uma distância próxima, que esperamos poder avistar a qualquer momento. Estando as piscinas desertas, colamos naturalmente esse som ao anterior, e atribuímo-lo à praia: aos banhistas de água salgada - sem reflectirmos que a água se encontra demasiado longe para ouvirmos chapinhar, e que por outro lado se perdeu o precedente ruído fora de plano da rebentação (que por seu turno abafaria aquele, etc., etc.). incongruências da pista sonora que nos escapam à primeira (e que estão feitas para tal).
Mas, incongruências ainda apenas de primeiro grau. No momento da revelação (de novo a figura de um enquadramento subsequente que vem trazer uma reviravolta completa ao quadro de mundo em que nos instaláramos a partir dos enganosos enquadramentos anteriores), verificamos estupefactos uma incongruência de segundo grau: que o som que julgáramos exterior e actual era afinal interior (aos headphones) e virtual; ou seja - como já devíamos saber a respeito dos sons da água -, vindo do passado (mas um novo reenquadramento visual-sonoro mostrara por fim que eles estão a ser ouvidos no futuro, no mesmo paradoxo que já observáramos de um sonoro que é visto e de um arco de tempo, de uma ’imagem-cristal” sonoro de tempo, própria do arquétipo oceânico).
Num momento da tal micro-deceptividade, chegáramos a ouvir uma vaguíssima música, a pontos de nos convencermos de que, essa, sim, seria proveniente dos headphones, no preciso momento (muito deliberadamente assim sincronizado) em que eles passam muito perto de nós, misturando-se com o som ambiente: música tão alta que extravasa - pensamos.
Mas não é assim. Michelangelo Antonioni, vindo de outro ponto no passado da memória cinematográfica retrabalhada (vindo de 1974, The Passenger), entra em cena, e traz consigo o seu leitor de cassetes, que entrega directamente nas mãos de Luis Urbano. Parece que o nosso profissional da limpeza e manutenção de piscinas alimenta também, como hobby, uma muito sui generis ‘profissão: repórter’ (titulo alternativo desse filme dual entre todos que é o de Antonioni), e dispõe em arquivo de uma colecção de pistas sonoras balneares, catalogada por meses e por anos, que desafia os mais dedicados esforços do melhor filatelista. Aquilo que ele ouvia nos headphones do seu walkman, passa a ouvi-lo num aparelho antonioniano saído directamente de um dos mais célebres e virtuosos planos da história do cinema, quando o que pensamos ser um diálogo a ser recordado na cabeça do protagonista se revela ser afinal uma cassete gravada (‘recorded', no jogo de palavras do inglês para o português) que ele está actualmente a ouvir, embora em seguida esse som actual sirva de pista áudio para uma imagem visual de uma efectiva recordação muito vivida tida por esse mesmo protagonista (e na qual ele mesmo também aparece). Dois planos, de uma complexidade e detalhe espantosos, em dois semicírculos temporais-espaciais de 180º cada, de que não podemos aqui dar conta pormenorizadamente, num filme em que esses (e alguns mais, não menos célebres), viram de pantanas o mundo e os critérios de realidade e de identidade.
Ora, o trabalho de segundo grau de Antonioni em 74 (ano-limite do período definido para o projecto de investigação ‘Ruptura Silenciosa'), que consiste em fazer interferir o trajecto autónomo da câmara e do filme no trajecto autónomo dos personagens, mas sem chegar a transgredir os respectivos níveis ontológicos, e criando (na mencionada cena em dois planos) um novo tipo de imagem, nem presente nem passada, uma imagem falsária (diria Deleuze), esse trabalho é aqui retomado a terceiro grau, já incorporando uma segunda fase histórica e conceptual de avanço no tratamento da dissociação e recombinação da pista visual e pista sonora, que encontramos por exemplo em India Song (1975), de Marguerite Duras, ou ainda, caracteristicamente, em Godard e em Straub / Huillet. (E poderíamos juntar-lhe as sizígias, o extremo das marés, dos alinhamentos astrais do 2001 de Kubrick, e The Conversation, de Coppola, por sua vez marcado pelo Blow Up de Antonioni, referenciais destituídos, aqui, da febre de detectar, mas não da compulsão do microfone ou da câmara clandestinos).
Porque é muito simplesmente impossível ouvir de fora o som dos headphones como se fosse um som ambiente mais exterior e circundante ainda, sem que nada (nenhum código, nenhum signo fílmicos) nos vincule a noção de estarmos em ’câmara sonora subjectiva’ a escutar o mesmo que escuta o personagem que vemos. É impossível, ao nível intra-diegético do filme, mas não é impossível no caso de um filme que, por metalepse, se inclua a si próprio (mesmo se só pontualmente) como conteúdo de si próprio - o que não era o caso de Antonioni.
Porque se trata de o filme nos dar de facto a ouvir ao mesmo tempo, no seu próprio nível ontológico de filme, o que no nível ontológico do filmado nos permaneceria inacessível nas circunstâncias em causa: e de nos dar os dois níveis simultaneamente, o ‘interior’ e o exterior simultaneamente. O grau de ludibrio é superior ao antonioniano, e corresponde ao intuito do projecto de investigação: revisitar desde o nosso tempo, e com os meios do nosso tempo, as grandes mutações (nacionais, mas também mundiais) no cinema e na arquitectura nas décadas de 60-70; no caso, não meramente repetir Antonioni, mas reapresentar o gesto de Antonioni, investigando a fundo o seu alcance e significação.
Ora, porém, a impossibilidade que o filme nos propõe só o é se tomarmos ingenuamente um filme segundo o esquema de uma imagem que apresenta um objecto, e não segundo este outro esquema: um objecto constituído por uma imagem que apresenta um objecto. Entendido desse modo, o filme não nos está a apresentar um senhor que ouve auriculares que nós também ouvimos impossivelmente, mas sim a apresentar-se como um filme cuja significação é a do itinerário temporal de um som cabalmente presente, que está a ser ouvido pelo personagem com o mesmo sentido de exterioridade plena em que nós próprios nos encontramos, o qual som todavia é um registo temporal do passado, mas cuja função intencional vem a ser a de se projectar no futuro, no mesmo sentido em que, ao ’projectar’, um arquitecto está simultaneamente a projectar a sua obra futura e a projectar o futuro dessa obra futura (a projectá-la no futuro dela). A projectar temporalmente umas piscinas na sua época balnear e em todas as épocas balneares retornantes sucessivas e futuras, num ‘mar’ de piscinas.
Os meios com os quais um filme faça isto, são todos os possíveis: e não certamente confinando-se a respeitar a ilusão da quarta parede cinematográfica, que, em 66, um ano a seguir às piscinas de Siza, Bergman queimava directamente em Persona, num tour de force do ‘paradoxo da auto-referência’ que resume de uma assentada toda a metafísica inexaurível dessa obra ímpar e suprema.
Claro que, com as categorias do intra-diegético e do meta-diegético, caem também as do offscreen / onscreen, etc., feitas para ordenar e clarificar o mundo mostrado nos filmes, mas não o próprio filme.
Ora, uma obra que contém outra que contém o mundo, já encontráramos esse modelo precisamente em pleno auge do modernismo que Luis Urbano afirma ultrapassado no período histórico premonitório a que se dedica (e cuja forma encontramos, límpida, nesta escuta, silenciosa no interior dos auriculares, mas que não deixa de ser anunciadora): no ‘D. Dinis’ da Mensagem de Pessoa - o sexto castelo.
Os paralelismos multiplicam-se: pelo ‘som presente dessas piscinas futuras’, pela ‘voz da gravação ansiando pelas piscinas’, etc.
Ora, porém, ‘a voz da terra ansiando pelo mar’ encalha agora na redundância pós-moderna da ‘piscina de mar’ (seja de água doce ou salgada) que duplica e civiliza o oceano, à sua beira — já cinicamente colada a ele paredes-meias, já ironicamente afastada umas jardas. A nova cultura do tempo das piscinas não escreve poemas sobre pinhais, filma cassetes com gravações do futuro. E fica em terra, convertendo em cantiga de escárnio a cantiga de amigo. A ruptura é aqui tão silenciosa quanto o pode ser este mar em terra face aquela terra em mar de Cottinelli Telmo (que por acaso arquitectava e filmava) em frente de Belém. Uma piscina assim rompe definitivamente muito mais com o mar do que com a terra, e à água opõe-se a água muito mais do que a terra (baralhando também o classicismo substancialista dos 'quatro elementos'). Entretanto, o ‘silêncio múrmuro’ do trovador é o do terra>mar como eixo temporal de Portugal enquanto saudades do futuro; o ‘silêncio múrmuro’ de Pessoa é o do poema sobre o poema (sobre os dois poemas de D. Dinis: as trovas, e ‘a fala dos pinhais’); o ‘silêncio múrmuro' ou ruptura silenciosa que Luis Urbano escuta é o desse memorial do cinema que ele recupera e potencia (a duplicidade antonioniana do som e da imagem), enxertado sobre o génio de uma obra arquitectónica afim, ambiguamente inserida em continuidade na envolvente natural, duplicando a rocha nos seus muros camaleónicos e o mar na sua piscina, unindo e separando terra e mar e diluindo e opondo natureza e técnica, com não menor ambivalência do que esse passageiro perdido de Antonioni. Os espaços arquitectónicos de Siza oscilam entre o ortogonal e o morfológico, entre 'o cru e o construído’ (balanço que também fascina Antonioni no filme referido, repetindo no terraço da Casa Mila, de Gaudi, as formações rochosas do deserto do Chade, e contrastando a morfologia do deserto com o panorama urbano); tal como o espaço sonoro oscila entre o natural e o técnico.
Já o sabemos: filmes que aparentam demasiado resumidos ao perceptivo costumam ser por definição os mais cerebrais de todos. É bastante, quase excessivamente cerebral, com efeito, atribuir a sensibilidade de um ser humano esta predominância sensorial de uma construção do mundo feita por assim dizer por sonar, um mundo de cego, ou melhor, um mundo hiper-auditivo, um mundo neo-aural mcluhaniano. O diagrama da realidade é, aqui, constituído pelo espaço acústico, pelo acontecimento sonoro, pelas distâncias escutadas, pela emoção que se ouve directamente, por uma memória que assim vê esse som, da mesma maneira que via o mar no seu som, partilhando essa experiência-modelo connosco desde o primeiro momento da película.
Entretanto, o cuidado da operação de câmara de Luis Urbano permite-lhe glosar e transpor os valores da arquitectura de Siza em valores de imagem no ecrã: de novo é o perceptivo que melhor veicula o conceptual e abstracto (um dos segredos do cinema, justamente).
Assistimos à fertilização da piscina que recebe a água que a enche, assistimos à ironia das duas águas gémeas de um lado e doutro do mesmo muro, a crescerem uma para a outra segundo a lua e segundo as grandes torneiras de caudal das cisternas subterrâneas que o filme visita e documenta, contemplamos enfim a superfície calma e igual da piscina límpida, plácida, doce, ao contrário do mar. Mas é quando viramos de eixo e percebemos a convivência da estrutura para o lado de terra, que compreendemos que a piscina enquanto arquitectura da água e das suas paredes corresponde à nossa renúncia oceânica no preciso momento em que mais o celebra, ao mar e ao cosmos.
'Sizígia' vem no fim. A baixa-mar e a preia-mar equivalem, aqui, ao silêncio da obra a sós (vemos esse silêncio, visitamos a piscina no seu estado de pureza, sem o ruído visual dos utentes, da figura humana interposta, complicativa) e à pululação assíncrona da alegre algazarra (ouvimos essa multidão que entrevemos fantasmaticamente nesse mesmo espaço noutro tempo - lição de Antonioni).
Essa sizígia pessoal do funcionário é o seu apogeu: ele alinha dois tempos e dois modos, a magnífica calmia da obra imperturbada e a agitação humana, conjugando-as no mesmo tempo como quem faz cinema. Talvez tenha sido assim que Siza a visionou e a projectou. Foi assim que Luis Urbano a filmou.
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a faia dos pinheiros, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
A pintora Fátima Pinto (Rame Rame, 2011; Arquitectura, de longe, 2008) apresenta uma obra plástica surpreendentemente afim à piscina de Siza e ao filme de Luis Urbano, escolhendo para epígrafe de uma sua exposição a seguinte linha de Merleau-Ponty: "Ao quebrar o silêncio, a linguagem realiza o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter”. Poderíamos acrescentar: e a arte procura encontrá-los a meio-caminho (porque a linguagem realiza demais o silêncio). Poderíamos resumir esses dois óleos assim: diante das morfologias incontíveis da natureza, e nas proximidades do mar, uma apoteose de afirmação ortogonal elementar, irrespondível.
Obra sem palavra, aquela piscina, as gravações, indistintas como a água, do funcionário écouteur, o rame-rame da pintora, e este filme, efectuam, todos, a mesma operação: não tanto simular o falso contraste entre uma forma plástica que, crescentemente carregada de história, se afastasse cada vez mais da natureza, mas vir recordar que é na ’natureza intocada' que cada vez mais as dores do mundo histórico se alojam e se entranham, e que uma piscina com vista para o mar o converte num mar com vista para as piscinas. A arquitectura, como toda a actividade humana, tem talvez o seu principal ponto de aplicação no seu contra-campo - mas, em geral, só o cinema costuma reparar nisso.
José Manuel Martins
Departamento de Filosofia da Universidade de Évora
Prémio Melhor Ficção Internacional
Arquitectura Film Festival 2012, Santiago, Chile
Prémio Especial do Júri, Competição Lab
35th Clermont-Ferrand Short Film Festival 2013, França
Prémio Especial do Júri, VII CortoAcquario
Festival Internazionale di Cortometraggi e Documentari 2013, Itália
Prémio Melhor Curta Metragem
Shortcutz Porto 2013, Portugal
Selecção Oficial
II CineCoa 2012, Portugal
Selecção Oficial
XI IndieLisboa 2013, Portugal
Selecção Oficial
XI Corti da Sogni Festival di Cortometraggi 2013, Itália
Selecção Oficial
XXVIII Rencontres Cinémaginaire 2013, França
Selecção Oficial
XII Concorto Film Festival 2013, Itália
Selecção Oficial
II French Short Movie Festival, 2013, Kuwait
Selecção Oficial
I Festival Internacional do Filme Lusófono de Genebra (FIFLG), 2013, Suíça
Selecção Oficial
III Ciclo Cine+Arq, 2013, México
Selecção Oficial
Arquitecturas Film Festival 2013, Lisboa
Selecção Oficial
VII Architecture Film Festival Rotterdam 2013, Holanda
Selecção Oficial
Festival Court c’est Court, Cabrières d’ Avignon, 2013, França
Selecção Oficial
XXVIII Festival Internacional de Cine de Mar del Plata 2013, Argentina
Selecção Oficial
FICARQ 2014, Aviles, Espanha
Selecção Oficial
Milano Design Film Festival 2014, Itália